quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

"A Grandeza da Simplicidade": Manuel Jacinto Arraial

À vida da pessoa simples e grande que foi o violinista Senhor Manuel Jacinto Arraial, falecido a semana passada, em Ponta Delgada, a escassos meses de completar 100 anos de idade, quadra-se bem o título desta evocação que, com a devida autorização do autor, o musicólogo Dr. Luís Carlos Fortuna Henriques, fui buscar a um artigo de opinião que recentemente publicou sobre as canções para as crianças de Tomás Borba.

Natural de S. Miguel, tendo passado pelos Estados Unidos, onde tocou numa orquestra, Manuel Jacinto Arraial veio viver para a Terceira, ilha em que passou a maior parte da sua vida, sendo trabalhador no 65th Air Base Wing (65 ABW – wing of the United States Air Force based out of Lajes Air Base, Azores, Portugal). Há cerca de dois anos, após a morte de sua mulher, Senhora D. Glória Arraial, voltou a viver na sua ilha natal.

Desde criança que dele me lembro a tocar violino nas Missas em S. Pedro, acompanhado ao harmónio pela Senhora D. Cristina Mesquita; cantava eu soprano, por volta dos meus oito anos, na capela daquela paróquia.

Pelo Natal, reuniam-se mais violistas, sob a sua direcção, para tocar a Missa do Galo, que para mim se tornava mágica, no tempo em que ali paroquiava o P.e Avelino Soares. Recordo vagamente que, num ano, a sua filha Susana também integrou esse grupo.

O que é certo é que, por influência disso, resolvi aprender música. Tinha um colega de turma, o António Abel Matos da Paz, que, com seu irmão Ângelo, estudava piano com a Senhora D. Maria Letícia Mourato; por intermédio deles, comecei também os meus estudos com a distinta Senhora, de saudosa memória.

Aos sábados, à tarde, a Senhora D. Maria Mourato e o Senhor Manuel Arraial reuniam-   -se para tocar. Faziam-no entre as 14 e as 18 horas. Pedi à professora que me permitisse assistir e, concedida a autorização, poucos sábados falhei, durante muitos anos, até terminar os estudos liceais.

Tive oportunidade de ouvir pela primeira vez sonatas, concertos – com redução de orquestra para piano – e outras peças para violino e piano de Mozart, Beethoven, Grieg, Mendelssohn, Tchaikovsky e de outros grandes compositores; fascinavam-me porém a Sinfonia Espanhola em ré menor, op. 21, de Eduard Lalo e a Dança das Bruxas de Paganini.

Passados anos, comecei a acompanhar o Senhor Arraial, como vulgarmente era conhecido, nas celebrações litúrgicas da Sé e também nas de S. Pedro. Fui substituir sua filha Eulália, que o acompanhava ao órgão na Sé, quando esta deixou de o fazer, após se ter casado. Entre uma e outra celebração, o Senhor Sargento Grilo transportava-nos no seu automóvel, em colaboração generosa com a paróquia de S. Pedro.

Acompanhei o Senhor Arraial em muitas Missas e casamentos, nas mais diversas paróquias da ilha.

Comecei também a ir a sua casa acompanhá-lo em serões musicais com peças que, dentro das minhas possibilidades – não sou nem nunca fui pianista – me era possível interpretar.

Integrei, com ele, o quinteto da Academia Musical da Ilha Terceira, com o qual se realizaram vários concertos em Angra e em Ponta Delgada; em colaboração com músicos americanos, no Recreation Center do 65 ABW, acompanhámos as produções cénicas dos musicais A Funny Thing Happened on the Way to the Forum, Fidler on the Roof e Oklahoma.

Por ocasião da reabertura da Sé Catedral, o Senhor Cónego Garcia fez cantar, na solene celebração eucarística, a Missa Glória ao Divino, composta expressamente para o evento pelo Senhor Arraial. Fez-se justiça ao homem que gratuitamente vinha doando e continuou a doar a sua arte e os seus dons a Deus e ao culto divino.

Em 2002, lembrei ao Pároco da Sé, P.e Doutor Hélder Fonseca, que o Senhor Arraial fazia 90 anos em Abril desse mesmo ano e que seria de toda a justiça repor aquela Missa e prestar-lhe uma pública homenagem. Visitámo-lo para lhe propor tal preito. Na humildade e simplicidade que o caracterizavam, começou por declinar. Ainda assim, após insistência nossa, veio a aceitar.

Nessa homenagem, o Coro da Sé, com o seu grupo instrumental, para o qual o Senhor Arraial fez um arranjo, cantou a sua Missa. Sua filha Eulália cantou The Holy City, Jerusalem, de Stephen Adams, com texto de F. E. Weatherly. A poesia fala-nos de um sonho em que se vislumbra a Jerusalém Celeste, com as suas portas abertas, onde se ouvem crianças, juntamente com os anjos, a cantar hossana nas alturas, hossana ao Rei; disse-me a filha que a escolha tinha decorrido do facto de ela considerar que o pai, com a sua vida de homem justo e recto, tinha certamente contribuído para a construção da Nova Cidade Santa de que havia de desfrutar um dia. Pela beleza e riqueza do conteúdo do texto, não resisto em transcrever a tradução no fim desta homenagem.

Em 2008, o Senhor Manuel Arraial compôs a Missa da Misericórdia Divina, dedicada a D. António de Sousa Braga, Bispo de Angra. Encontrámo-nos então amiúde, porque tomei a cargo a transcrição dos seus manuscritos no programa Finale. A Missa foi estreada no ducentésimo aniversário da dedicação da Catedral de Angra, em 2008, pelo Coro Paroquial da Terra-Chã, sob direcção de Liliana Silva, tocando órgão Jannen Teixeira, também colega e amiga do Senhor Arraial.

Compunha seguindo as regras do contraponto que lhe ditava o coração, diria Tomás Borba; eu acrescento, «cantava» ao Senhor com arte e com alma, como diz o salmista.

Numa das nossas últimas conversas, curiosamente, e a propósito da sua provecta idade, disse-me ele que, uma vez finda a sua vida neste mundo, gostaria de ter o privilégio de gozar eternamente das delícias de que fala a letra da canção interpretada há dez anos, na Sé, por sua filha.

Muito aprendi com ele, musical e humanamente. Poderia ter aprendido muito mais. Disse-me que ainda estudava violino uma hora, todas as manhãs. O Senhor Arraial era uma pessoa frontal, de uma pureza de coração, bondade, sinceridade, honestidade e justiça sublimes: nunca o ouvi fazer uma crítica destrutiva, nem dizer mal de alguém. Estudava violino tão afincadamente que, apesar de amador, e bom que o era, tocava os Caprichos de Paganini e outras obras virtuosas de grande dificuldade técnica.

Em S. Pedro, o Senhor Arraial e a Senhora D. Glória eram conhecidos por serem um casal exemplar, onde imperava o amor e o respeito mútuo.

No Domingo, dia 12 do próximo mês de Fevereiro, pelas 18 horas, será celebrada uma Missa de sufrágio pelo seu descanso eterno, na Sé Catedral de Angra, na qual participarão, em sentida homenagem, os coros da Sé e da Terra-Chã, dirigidos por mim e por Liliana Silva. Apesar de o actual director do coro da Sé ser Jorge Barbosa, a amizade que nutria pelo Senhor Arraial e o respeito pela sua memória, outorgam-me o privilégio de direcção do coro. Tocarão o órgão Jannen Teixeira e Nelson Pereira. Será reposta a Missa da Misericórdia Divina.

Estando o Senhor Bispo em S. Miguel, nesse Domingo, presidirá à celebração o Pároco moderador da Sé e Vigário Geral, P.e Doutor Hélder Fonseca.

Que a sua alma descanse em paz e o seu exemplo perdure.
Duarte Gonçalves-Rosa

«A Cidade Santa, Jerusalém

Ontem, durante o sono,
Tive um sonho belíssimo:
Pisava a velha Jerusalém,
Ao pé do templo, quando
Ouvi crianças cantando.
E, estando elas a cantar,
Pareceu-me que dos anjos
A voz dos céus respondia.


Refrão
Jerusalém, Jerusalém.
Franqueia as tuas portas e canta:
Hossana nas Alturas,
Hossana ao Senhor teu Rei.

Depois, outro sonho m’aparecia:
Nas ruas cessara o bulício,
Emudeciam os hossanas festivos
Que entoavam as crianças.
Escurecera o sol, ó mistério,
O frio, na manhã, enregelava,
Quando da cruz s’erguia a sombra,
Lá no monte solitário.


Refrão
Jerusalém, Jerusalém,
Ouve! Como cantam os anjos:
Hossana pelos tempos dos tempos,
Hossana ao Senhor teu Rei.

Mas eis que o cenário mudando,
Nova terra aparentava.
Eu vi a Cidade Santa
Junto ao mar intemporal.
Resplendia p’las ruas a luz de Deus,
Abertos os portões de par em par,
A todos, quem queria, franqueados,
Que a ninguém era negada.
Eram a mais, na noite, astros e lua,
Tanto como, de dia, do sol o brilho.
Era a nova Jerusalém
Que nunca, nunca, cairia.

Refrão
Jerusalém, Jerusalém,
Canta, que a noite findou:
Hossana nas Alturas,
Hossana para todo o sempre.