terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Novo "Ambiente Sonoro" na Catedral

Música «ambiente» na Catedral de Angra 
Convite à Concentração e Relação com Deus

Desde há uma semana que, durante a tarde, se pode ouvir na Sé de Angra, canto gregoriano e polifonia sagrada, como música ambiente que convide ao intimismo da oração e da nossa relação com Deus.

Há que ter em conta que, apesar da sua beleza e qualidade, a música sacra, a partir do Barroco e durante os séculos XVIII e XIX, é mais exuberante, chegando mesmo a ser uma transferência da ópera para a Igreja. Hoje é música para se ouvir e apreciar em concerto.

O Coro da Sé tem feito bem essa distinção: na liturgia interpreta música escrita actualmente para os ofícios divinos, em língua vernácula, e, paulatinamente, vem inserindo pequenos trechos de polifonia sagrada do século XVI (o século de ouro desse género musical) e de cantochão; outra tarefa a que se dedica é à divulgação, em concerto, de peças do Arquivo Capitular. Nesse sentido realizou já três concertos, cuja gravação em CD estará brevemente disponível em álbum triplo. Aí se pode verificar, sobretudo na Missa de D. Pedro IV, o belcantismo transposto da cena lírica para o «teatro» litúrgico.

O canto gregoriano está intrinsecamente ligado ao culto divino, e a polifonia sagrada consiste em trechos expressamente feitos para esse culto, por mestres de capela, compositores e cantores cuja formação era específica nessa área e a sua missa/profissão era precisamente servir a Deus com a música, sendo para tal remunerados.

A partir do momento em que deixou de haver compositores e intérpretes exclusivamente ao serviço da Igreja, começaram os músicos do teatro a tocar também na liturgia, passando a música destinada a essa função a ser decorrente das modas operáticas da época.

No século XVIII, sobre uma Missa de festa em honra de Santa Cecília na Igreja dos Mártires em Lisboa, disse William Beckford:

Já era escuro quando chegámos. Como tínhamos vindo muito depressa, afigurou-se-nos encontrarmo-nos, de repente, não numa igreja, mas num esplêndido teatro, cintilante de luzes e dos fios das lantejoulas. Todos os altares resplandeciam com as suas velas acesas, todas as tribunas estavam engalanadas com reposteiros do mais vistoso damasco da Índia. Centenas de cantores e músicos executavam as mais animadas e brilhantes sinfonias. Muito bater de leques, muitos risos abafados e muitos namoricos pela espaçosa nave, confortavelmente atapetada para acomodação de numerosos grupos de senhoras. A concavidade, em frente da entrada principal, onde fica o altar-mor, de tal modo me parecia um palco e era decorada tão à moda das óperas que eu estava sempre à espera de ver a entrada triunfal do herói ou a descida de qualquer divindade pagã, cercada de cupidos e rolas. Toda esta ostentação era em honra de Santa Cecília e custeada pela irmandade dos músicos.[1]

Eça de Queirós, em O Crime do Padre Amaro, também menciona de forma irónica o estilo de música que se praticava em Portugal:
— Ora, prima! dizia, ora, prima! — Não, ele, se o obrigassem a ouvir missa, numa capelinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!... Não compreendia, por exemplo, a religião sem música... Era lá possível uma festa religiosa, sem uma boa voz de contralto?
— Sempre é mais bonito, disse Amaro.
— Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó prima, lembra-se daquele tenor... como se chamava ele? O Vidalti! Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglesinhos? O tantum ergo?
— Eu preferia-o no Baile de Máscaras, disse a condessa.[2]

Mais adiante, na mesma obra, diz Eça:
Amélia mudara muito; crescera: fizera-se uma bela moça de vinte e dois anos, de olhar aveludado, beiços muito frescos — e achava a sua paixão pelo Agostinho uma "tontice de criança". A sua devoção subsistia, mas alterada: o que amava agora na religião e na igreja era o aparato, a festa — as belas missas cantadas ao órgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o altar-mor na glória das flores cheirosas, o roçar das correntes dos incensadores de prata, os uníssonos que rompem briosamente no coro das aleluias. Tomava a Sé como a sua Ópera: Deus era o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se vestir, de se perfumar com água-de-colónia, de se ir aninhar sobre o tapete do altar-mor, sorrindo ao padre Brito ou ao cónego Saldanha. [3]

Mais um excerto da obra mencionada elucida a má interpretação da música que se praticava então nas igrejas portuguesas:
[Amélia] arregalava os olhos para o sacrário e para o trono que o padre Amaro, cercado dos diáconos, incensava em semicírculos significando a Eternidade dos Louvores, enquanto o coro berrava o Ofertório... [4]

Ainda na referida obra pode perceber-se o ridículo da música executada na igreja, enquanto uma partitura de cantochão, o canto por excelência da Igreja Católica Romana, era desprezada a ponto de, enrolada, servir de batuta:
A igreja tremia ao clamor do órgão em pleno; de bocas abertas, os coristas solfejavam a toda a força; em cima, alçando-se entre os braços dos rabecões, o mestre da capela, no fogo da execução, brandia desesperadamente a sua batuta feita dum rolo de cantochão. [5]

Foi Pio X quem, em 1903, com o motu proprio Tra le sollicitudine, determinou novos regulamentos para o desempenho da música no liturgia Católica Romana, reafirmando a primazia do Canto Gregoriano e a superioridade da Polifonia Sagrada do Renascimento, dando destaque à obra do compositor Giovanni Pierluigi da Palestrina.

Todavia, ainda na transição da primeira para a segunda décadas do século XX, se cometiam muitas barbaridades como se pode constatar no texto que se segue:
Não há por certo uma só das pessoas que nos lêem que não tenha assistido a esse martírio musical, que, a título de música de igreja, impune de uma excomunhão bem merecida, não trepida em acompanhar desentoadamente os ofícios divinos.

As irmandades, em geral pobríssimas de recursos, contratam com qualquer “director de funções” – entidade característica, que canta aos mesmo tempo de soprano e de barítono e que tem na sua mão o repertório a exibir e os músicos para o executarem a preço cómodo – combinam com esta criatura preciosa a festa em condições económicas quanto possível, e que não afectem demasiado o seu magríssimo pecúlio.

O nosso homem, claro está, não pode contratar sumidades musicais, mas en revanche escolhe o que há de mais insignificante e de mais reles e vai com a sua pseudo orquestra. Duas rabecas, um rabecão, flauta, clarinete, cornetim, trombone, e que não esqueçam os tímbales, para atroar a abóbada do templo. Ao todo oito executantes, quantos bastarão – e até sobram – para fazer engulhos ao desgraçado juiz da irmandade. Se a festa é rija, torna-se necessário juntar aos oito contratados mais um que vai dar o tom solene da função, e esse munido de dois instrumentos atroadores: bombo e pratos. (…) A guerrilha nome típico que se dá a um bando de assassinos… (perdão!) de filarmónicos, cujos méritos orçam pelos dessas figuras características que anunciam espectáculos à porta dos teatros de feira, a guerrilha, dizíamos nós, anda de manhã de porta em porta, estropiando o desventurado hino da nação e angariando donativos para a festa. Num dado momento, ao chegar à igreja, o clarinete lança mão da rabeca, o cornetim toma a parte de flauta, o trombone agarra-se ao rabecão, e eis como que por encanto uma… orquestra organizada.

E o repertório? Ah! O repertório é tudo quanto há de despropositado e de anti-religioso. Do coro dos nossos templos raríssimas vezes se fazem ouvir as produções verdadeiramente litúrgicas. A música profana – e que profanação – reina ali em absoluto e desde longa data. Hoje mesmo, tirante raras composições em que são respeitadas as fórmulas que convêm à música sacra, que produzem os nossos compositores? De que constam os arquivos dos directores de funções? De árias e de cabaletas mal disfarçadas de óperas, de trechos profanos em que se substituem escandalosamente palavras libérrimas por qualquer Laudamus Te ou Domine Deus. Há quem condene este nefasto processo a ponto de o censurar até quando os nomes de Haydn e Mozart se envolvem em sacrilégio. Uma Ave Maria de Mozart se canta nas igrejas de França, adaptação de um gracioso coro da ópera cómica Cosi fan tutte. A allure do trecho tira a sua consequência de quanto há de sugestivo no título da partitura (Assim fazem todas)! É uma obra-prima, como aliás o são muitas páginas do autor do D. João, mas que importa, se o género em que filia a condena, se o assunto que a inspirou lhe proíbe a entrada no templo!

Esta singela exposição dos factos, que fazemos serenamente, e em que não há o mais leve exagero, conduz-nos ao resultado mais esmagador para a arte e mais cruel para a religião que devemos acatar com respeito.

Para que a música religiosa se não alheie do seu género, deve limitar-se ao estilo ligado, que só esse dá a impressão de calma, de grandeza e de majestade que a igreja reclama. As partes devem unir-se e encadear-se quase sem interrupção, empregando-se frequentes retardos, prolongações, sincopas, imitações e todas as formas canónicas e rejeitando por completo os ritmos ligeiros, harpejados e que caracterizam a música livre.

Seria o primeiro serviço altamente educativo que nos evitaria o ridículo atroz de ouvirmos as esganiçadelas de um falsete, que nos provoca o riso quando devemos concentrar o nosso espírito em coisas sagradas.

Sabe o leitor quanto aufere um músico da Sé, onde alcança um lugar vinculado mediante concurso? A fabulosa quantia de 4$200 réis mensais, sujeita a terríveis descontos, se o artista incorrer na mais leve falta. Por esta amostra já se dá uma ideia de como se remuneram por cá as festas de igreja. Mas, leitor, se queres ver como se canta na Sé vem connosco e penetremos no templo. Além, próximo do altar-mor, nas paredes laterais, há dois órgãos. É no varandim, em volta dos órgãos, que estão os instrumentos e os coristas. No da esquerda está a orquestra – uma orquestra imponente – dez ou doze figuras ao todo, no da direita estão os cantores e o maestro que os dirige e… aos vizinhos defronte. Todos os executantes se acotovelam uns aos outros, porque não cabem no acanhado recinto; os rabequistas, a flauta, as trompas, o violoncelo tomam posições fantásticas para poderem mover os arcos ou tirar som dos seus instrumentos…

Imagine-se um varandim que terá, quando muito, 7 ou 8 metros de extensão, e todos ali, a um fundo, encolhidos, constrangidos, escassos no número, que efeito poderá produzir esta orquestra, que deveria a primeira pela sua categoria, a fazer-nos ouvir, numa execução condigna, quaisquer obras de Palestrina ou de Bach? Por isso, caro leitor, agora que já te mostrámos a música da Sé, parece-nos prudente sairmos do templo sem a ouvires… Não porque não haja lá músicos de merecimento incontestável, mas pelas condições deploráveis em que eles se congregam e se apresentam. Quiséramos prosseguir, gastar todo o latim em prol da nossa causa, mas – oh irrisão! – enquanto nos esforçamos por indicar o verdadeiro trilho a seguir, está o sineiro cá da freguesia badalando graciosamente a Rosa Tirana.

Decididamente, é necessário começar pelos sineiros… [6]

Em 1930, o panorama não havia melhorado:
Em Portugal, ainda mais do que em Espanha e em Itália, as coisas musicais tinham, no fim do último século, chegado ao máximo da miséria, na igreja. Podia ter sido uma miséria decente, uma miséria respeitável, uma miséria comovente até, mas não: era uma miséria pintalgada, insolente, relaxada, com as palavras dos textos sagrados a bailar sobre ritmos de quadrilha reles, com as abóbadas venerandas a ecoar às sonoridades ignóbeis de orquestra de feira.
E o pior era a protecção que das autoridades eclesiásticas vinha. Era então mais fácil ouvir a um leigo em matéria religiosa uma crítica justa à péssima música das igrejas do que a um sacerdote. Os prelados, esses, fechavam-se numa amusicalidade impenetrável, que ainda hoje dura, mas que nesse tempo, nem ao menos a disciplina de uma lei musical católica, minorava.

Quem estas linhas escreve ainda se recorda de as ter ouvido da Aïda, do Fausto e até de Bohème e da Tosca. Esse desatino acabou, mas ficou o trechozinho de música pura profana: a Reverie de Schumann, o adagio da “sonata patética” e o larghetto da segunda sinfonia de Beethoven. Um passo mais à frente consistiu na aceitação da música semi-religiosa de Gounod, Mèdermeyer e congéneres.

O Cantuale dos lazaristas organizado pelo P.e Carmelo Ballester durante muitos anos residente em Lisboa, obra que se espalhou muito entre as meninas de boas famílias organizadoras de coros religiosos e que já inclui trechos de Vitoria e de Palestrina desempenhou também um papel importante no trabalho de libertação das almas possuídas do demónio da banalidade profana, e, finalmente, um dia, o Dr. Josué Trocado e os seus orfeonistas da Póvoa do Varzim cantaram, numa das nossas Catedrais, uma missa inteira de Palestrina. A multiplicação dos orfeãos, a publicação de trechos polifónicos do melhor estilo, nomeadamente de uma revista de Coimbra de que A Arte Musical já fez o devido elogio, são factores importantes a influir constantemente no levantamento do nível da música religiosa entre nós, mas quantos, daqueles que estão influindo beneficamente, terão a plena consciência, a compreensão exacta, e, o que mais importante é em coisas de arte, o amor, a sensibilidade emotiva do que estão fazendo?

Devem causar sensação estas nossas palavras, mas é sem o mínimo receio de desmentido que as mantemos. Para o provar bastar-nos-á colocar ao lado da tão célebre e cantada missa de Requiem de Perosi, o Requiem de Pizzetti. Este, apesar de profano e muito moderno na sua escrita, assimilou perfeitamente o admirável espírito polifónico e anti-tonal da música católica, aquele, corroído até à medula pelo espírito tonal da sétima da dominante, não consegue dar uma longínqua ideia do que pretende e supõe realizar. Deve dizer-se e infelizmente não é para honra do catolicismo nos países latinos: Debussy, Ravel, Malipiero, Pizzetti e os russos modernos, fizeram mais convictamente a propaganda da atmosfera gregoriana, modal, na música, do que os mestres de capela oficiais das catedrais e igrejas católicas. Exceptuamos os países germânicos: a Inglaterra e a Alemanha, porque neles, para vergonha nossa, não conseguiu morrer nem mesmo no século XIX o espírito da polifonia vocal.
(…)

O público profano que ouve na ópera a Trenodia da Fedra de Pizzetti, ou no concerto a «Grande Páscoa» de Rimsky ou as Chansons de Charles d’ Orléans de Debussy e sente sinceramente estas obras-primas, estará neste caso mais perto da música gregoriana que Perosi, Bottazzo e tantos outros aprovados e adoptados nas igrejas como autênticos representantes do espírito do mottu proprio de S. S. Pio X. [7]

No tempo de Advento, em 2011, o coro da Sé de Angra interpretou, nas Eucaristias Dominicais, no momento post comunio, o trecho gregoriano Jesu, dulcis memoria e a peça polifónica de Palestrina Jesu, Rex admirabilis. Esta iniciação vai ganhar forma de modo mais pleno na Semana Santa de 2012, na qual, a par dos cânticos litúrgicos compostos na actualidade, em vernáculo, em cada dia, se cantará um trecho gregoriano e outro polifónico, incluindo Mateus Pereira de Lacerda, terceirense, eclesiástico, compositor e mestre de capela da Sé de Angra na viragem do século XVIII para o XIX.

Voltando à música ambiente que, ouvida muito tenuemente, deve elevar o espírito e levar à concentração necessária para o nosso diálogo com Deus, a música destinada a encontros de jovens, com é o caso da comunidade de Thaizé e dos encontros Shalom, também é descabida porque distrai. A monotonia da repetição melódica servirá para o contágio de emoções e de uma pseudo lavagem cerebral que, por isso mesmo é meramente momentânea, salvo meritórias excepções. O uso de instrumentos, fora dos actos litúrgicos ou de concertos sacros, a não ser o órgão – instrumento litúrgico por excelência – numa registação suave de flautados, em pianissimo, também suscita a distracção.

Valorizemos pois o Canto Gregoriano, as composições litúrgicas actuais – que na pessoa de alguns compositores como Ferreira dos Santos e Cartageno revelam qualidade e literacia das técnicas de composição e dos modos gregorianos que devem ser a base da música sacra do nosso tempo – e a Polifonia Sagrada do Renascimento.

Nesse período e no Maneirismo [8] , a produção musical portuguesa foi fértil em quantidade e qualidade. Manuel Cardoso, Diogo Dias de Melgás, Pedro do Porto (Escobar), Duarte Lobo, Estêvão Lopes Morago, Filipe de Magalhães, D. Pedro de Cristo, são alguns nomes relevantes nessa área. Há que interpretá-los. Neste espaço divulgar-se-á algumas partituras e interpretações.

Angra do Heroísmo, 7 de Fevereiro de 2012

Duarte Gonçalves-Rosa (Mestre de Capela da Sé de Angra)


[1] Diário de William Beckford em Portugal e Espanha. Trad. de João Gaspar Simões, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1983, p. 173
[2]Eça de Queirós. O Crime do Padre Amaro. «Edição Livros do Brasil», Lisboa, [s.d.], p. 54
[3] Idem, p.89.
[4] Idem, p.300.
[5] Idem, p.301.
[6] Júlio Neuparth. «Festas de Igreja», Eco Musical (12-2-1911 e 19-2-1911). N.os 7 e 8, Lisboa.
[7] Cf. «Música Religiosa», A Arte Musical (20-10-1930). N.º 30, Lisboa.
[8] Género intensamente expressivo que emprega com profusão o cromatismo, as dissonâncias e os intervalos aumentados e diminutos. Após a reforma tridentina que colocou entrave aos exageros contrapontísticos que dificultavam a compreensão do texto cantado, os compositores de música sacra interessaram-se de forma peculiar pelos textos litúrgicos que encerravam mais marcado conteúdo emotivo (textos marianos, liturgia da Semana Santa, etc.). O potencial dramático manifesto facultava uma exploração musical mais intensa de recursos expressivos, atestando uma preferência por dificuldades de contraponto como um jogo de virtuosismo técnico. Cf. Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro. História da Música (Sínteses de Cultura Portuguesa). Comissariado para a Europália 91 – Portugal / Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1991.